inacabado.
Meu amigo - único amigo -, a quem eu conhecia profundamente, e de um jeito estranho, partiu nesta manhã.
Partiu após organizar suas roupas em quarteirões pequenos dentro da mala cor de vinho. Um compartimento rijo e impessoal que havia comprado dias antes num bazar organizado pelas senhoras que frequentavam a igreja dos Aflitos. Era uma mala de muitos donos, cada um apagado discretamente pelo conseguinte e este, agora, era ele.
Pôs as coisas prontas próximas ao pé da mesa e fez com que a sala fosse inundada por uma atmosfera morna vinda do vapor de café fervendo no fogo e pela luz que entrava macia através da cortina de algodão cru.
Eu o via preparar tudo pelo trecho aberto na parede sem porta do meu quarto. Em pouco tempo eu estaria sozinho. Sem movimentos no início das manhãs. Sem os barulhos discretos de quem se preocupa em não incomodar o sono alheio. Sem me deparar com o blaser cor de pele engomado e pendurado no canto próximo à entrada da cozinha.
Em pouco tempo eu não encontraria bilhetes me informando sobre a impossibilidade de preparo do almoço do dia, como se fosse esta uma obrigação - realizada sempre com prazer e presteza, notadamente.
Em muito pouco tempo eu não teria um amigo tão gentil me cercando todo dia. Promovendo um cuidado jamais conhecido por mim antes que esse moço de bom coração adentrasse minha vida. E isso já faz muito tempo, desde que iniciamos, os dois, a quinta série num colégio novo muito tempo após o início das aulas em fevereiro. Já era abril quando chegamos.
[...]
Éramos estranhos numa turma de meninos e meninas misturados e envolvidos há muito tempo e que, só depois de muitos anos, era pervertida por novos rostos, novos nomes nas cadernetas dos professores, cadeiras velhas ocupadas por corpos recém-chegados. E nos reconhecemos nessa estranheza enquanto os demais se forçavam a agir com naturalidade. Como se não percebêssemos o quão feridos se sentiam por ver seu território dilacerado por dois outros meninos vindos sabe-se lá de onde, sabe-se lá porquê, e insistiam em manter sorrisos constragendores quando se percebiam observados por nós. Um em cada canto. Ambos nas extremidades. Opostos e atravessados por uma pequena multidão desconcertada.
Às vezes nos olhávamos na tentativa de dissipar o desconforto. Ele sorria comedido. Eu retribuía com os olhos baixos que voltavam sempre aos dele após percorrer pontos incertos que me ajudavam a suportar o peso de sua atenção. E o olhava novamente.
Nossa afeição mútua foi crescendo lentamente sem o auxílio de palavras. E sempre antes do recreio, meu coração perdia o ritmo numa ansiedade desesperada por encontrar o novo amigo pelos pátios ou cruzando corredores. De fato, o que nunca aconteceu. Nunca soube onde se escondia quando eu o procurava discretamente.
Um comentário:
AMEI este. amei.
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