#02
-- Há quanto tempo está aí?
-- Importa? Desde as seis, eu acho.
Acho que ele está dizendo alguma coisa, mas quando sinto esse turbilhão cruzar meu corpo vertical sei que não sou capaz de ouvir qualquer som. Surge um ruído em espiral e tudo em volta fica turvo. Com o olho castanho dele no meio, como ponto de fuga.
Ele sabe de tudo isso, mas não se cansa de falar. E eu não me canso de tentar imaginar, depois que esse ocaso passa, que as coisas acalmam, que os póros voltam a se dilatar e estamos indo juntos sentar naquele parapeito em Humaitá, quais foram as palavras. Odeio essa mania de pensar rimado.
-- Sabe que esse tempo todo foi como se nada acontecesse. O que parece é que meu corpo esteve congelado durante oito meses enquanto meu cérebro assistia a tudo depois de apertar o mute. Mas não tinha muita graça como tinham os filmes mudos. Era uma surdez diferente. Suportável, apenas isso. E você nem estava lá pra quebrar aquele gelo.
Enquanto ele falava, o mundo era uma boca cheia de dentes reluzindo à minha frente. Eu me distraía com o propósito de não perceber qualquer mudança. Tão desnecessário! Éramos energizados enquanto a cidade continuava estática do outro lado do mar. À direita, edifícios esguios penetrando o céu. À esquerda, uma massa amorfa e ocre se desfazia até bem próximo do encontro com a ilha. Nós no meio. As rochas sujas lá embaixo pelos restos de galinhas decompostas, garrafas comidas pelos talos de flores desfeitas, pratos de barro vazios pelas ondas e os óculos dele cheios de micropontos de salitre. Estávamos amarelados. O sol quase horizontal naquele programa de domingo vulgar. Nesta cidade tudo é vulgar, recorrente, absurdo.
[continua...]
terça-feira, agosto 11, 2009
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